O ensino leigo e a perseguição sectária, Dr. Elias Martins (1910)
Discutir a instrução pública, dizer leal e resolutamente sobre os seus processos recônditos e cavilosos, é molhar a pena no veneno letal que escorre insidiosamente pelo organismo da nação.
De muito trabalha-se na sombra, mina-se o terreno da obra cristã, prepara-se o advento do paganismo, vestindo-se-lhe o velho e repulsivo arcabouço com as engalanadas roupagens das artes das ciências; é a raça fatal dos Julianos, 1 proliferando através do tempo e do espaço.
Foram-se os deuses da fábula, mas os vícios que os simbolizavam, germinam e crescem no coração dos homens denominados “espíritos fortes”, que, a exemplo dos gentios, expulsando S. Paulo, não podem ouvir as leis da moral, contrárias a seus hábitos e paixões; confundem a licença com a liberdade, o gozo bestial com o amor, a pornografia com as artes, os sistemas desvairados com as ciências, a cultura dos instintos com a instrução!
Daí esta sociedade infeliz, roída de apetites ferozes, combalida de ódios de tigres; a prostituição, os crimes contra a propagação da espécie, o infanticídio, o adultério, o suicídio, o roubo, os assassinatos são frutos dessa propaganda de ruínas e trevas.
A verdade não cairá, é indestrutível e eterna; contra ela não prevalecerão jamais as portas do abismo.
A instrução foi, é e será sempre o pão do espírito, tão essencial à vida da alma como o leite materno ao crescimento e saúde do corpo; sol radioso e fecundo, passa às vezes por longos eclipses, na existência dos povos, até que um dia, cumpridos os secretos desígnios da providência, surge de novo, na noite das consciências, espanca o erro e mostra aos desgraçados náufragos o caminho da salvação.
O Brasil nasceu à sombra da cruz, bebeu no berço o néctar sagrado, cresceu e agigantou-se debaixo da bandeira da boa nova; seguia-lhe, porém, os passos o traiçoeiro inimigo, à espreita das ocasiões propícias para instilar-lhe no seio o vírus da dissolução, e, ganhando terreno, logrou enxertar, na sua lei suprema, a carta de alforria de todos os erros.
Começou também no Piauí o trabalho de descristianização:
“Deu sinal, a trombeta castelhana
Horrendo, fero, ingente, e temeroso.
(...)
E as mães, que o som terrível escutaram,
Aos peitos, os filhinhos apertaram.”2
Era a imagem de Jesus desterrada das escolas sob o malhete da impiedade! Golpe, inesperado e decisivo, ecoou, como um grito de morte, em meio das populações católicas; a reação rebentou, pronta e geral, o patrimônio de séculos, legado dos nossos maiores, chamou a postos milhares de defensores, calmos e destemidos.
(...)
A reforma do ensino é um desses edifícios modernos de formas exteriores, vistosas e atraentes, mas no fundo dissimula imenso precipício contra a alma virgem das crianças, privando-as do perfume celeste da crença.
Quantos labores não despendemos, cuidando desses inocentes lírios, a incutir-lhes no coração, desde o alvorecer, a imagem de Deus?
Quem é que sendo pai ou mãe, não sentiu o gozo das lágrimas, ouvindo o filhinho querido, nimbado de luz, no santuário do lar, a dizer a – Ave Maria?
Mas um dia desponta, em que esse ambiente de doçuras e carícias e interrompido, soa a hora da escola, passando o pequenino ao domínio do mestre, que outrora era o prolongamento dos pais, o jardineiro desvelando daquela inteligência em botão e que hoje já é assim, fez-se o demolidor da educação doméstica pela palavra e pelo exemplo.
Aqueles que têm recursos, dispõem de bens de fortuna, podem cautelar os filhos dos terríveis contágios; os pobres sucumbem e entregam ímbeles cordeirinhos ao lobo voraz.
É que o princípio moderno e genérico de que a maioria compete ao governo do povo, só prevalece na contagem dos votos das atas eleitorais falsificadas, destinadas a abafar a opinião nacional, em proveito de uma ínfima minoria.
(...)
“As bases principais da reforma são a criação da Escola Normal para o preparo do professorado, a criação de grupos escolares na capital e nas cidades mais populosas, a inspeção técnica do ensino, o estímulo dos professores e a execução severa dos programas de ensino.”
Tudo isto seria muito bom e muito útil, praticado com ânimo conciliador e reto, respeitando os direitos da grande família católica que é o elemento preponderante.
No entanto, na Escola Normal, onde a mulher é a parte mais influente, por ser a preferida no ensino primário, a ideia de Deus foi interditada, o que quer dizer que outros princípios vão obscurecer e transviar aquelas angélicas criaturas.
E o perigo está iminente, não é uma quimera, porque os mestres na sua maioria, não têm fé, são adversos a Religião.
Se um homem sem crenças é incompreensível para nós, a mulher toma as proporções de um ser absurdo; perdendo o perfume das virtudes cristãs, deixa-se fatalmente saturar pela atmosfera do modernismo.
(...)
Fecundo, repleto de compensações, seria o sacrifício, se aproveitar-se aos nossos filhos, estes, pudessem colher, nessa fonte, a água viva que o divino mestre deu a beber à samaritana: o que receamos, fazendo-nos estremecer de horror é que lhes encontrem, na escola, a cultura dos germens, que matam a alma.
Não; esta calamidade apavorante não rejeitará os nossos corações; Deus protege as criancinhas – sinite parvulos venire ad me.3
Ensino leigo é a fórmula moderna dos fatores da dissolução social, no trabalho de corrupção da mocidade, operado nas escolas, em nome da constituição.
Mentira, mil vezes mentira!
A lei suprema da República, vazada no espírito libertino das instituições americanas, decretando “a separação da Igreja do Estado, tornando-os independentes, vedando subvenções ao culto”, não proibiu que fosse ministrado, nos estabelecimentos de instrução pública, ensino religioso àqueles que desejam recebê-los. É um direito sagrado dos pais disporem da educação de seus filhos.
Nenhum governo honesto, sob pretexto de neutralidade, pode recusar que a escola complete e fortifique princípios morais e religiosos que a criança recebeu no lar, respeitá-los e protegê-los é seu imperioso dever, se não quiser transformar-se em objeto tirano das consciências.
Pretende o contrário é ferir brutalmente a liberdade espiritual, em nome da qual os falsos representantes de um povo católico inscreveram, na sua constituição, o mandamento da separação da Igreja e do Estado.
É um contra-senso, um absurdo, dizer que, em um governo se intitula do povo pelo povo composto em sua quase totalidade de tolher o ensino religioso; semelhante teoria não encontra acolhida nem nos países regidos pelos imperadores e reis protestantes.
(...)
O plano de perseguição, a princípio velado e quase imperceptível, descobre-se pouco a pouco, revelando que, se não é uma capitulação do governo ao elemento revolucionário, estamos em presença de um conluio, organizado, com todas as regras da hipocrisia, para iludir a boa fé do povo.
(...)
Não se pode dar golpe mais fundo e brutal, nos sentimentos religiosos dos professores e da mocidade; e o retorno decisivo aos tempos tenebrosos do paganismo, em que os cristãos, arrastados em cadeias, pelos tiranos, tinham de escolher ou sacrificar aos deuses ou à morte, em suplícios horríveis e inomináveis.
O professor católico, especialmente a mulher, cujo coração voltado para Jesus, a coloca em evidência, impelindo-a incondicional devotamento, tem de optar entre a fé ou a apostasia, o cumprimento do preceito religioso ou a obediência a impiedade, o emprego, o pão nosso de cada dia, ou a demissão.
E, ao mesmo tempo, impõe-se às nossas crianças a insubmissão às leis de Deus, debaixo de penas severas, golpeando-se a autoridade do pai esbofeteando a face do povo!
É impossível, antes, esse desafio formal aos brios do Estado, insulto à própria honra individual dos católicos que não despertem os adormecidos e não encorajem os amolentados.
Que falem esses homens descuidados e medrosos, corações tíbios e gelados, se pode haver maior profanação; se é concebível, pelas leis da honestidade, que eles fiquem mudos e parados, sem uma palavra de protesto, sem uma queixa articulada em público, sem um tênue sinal de defesa e amor pelo seu Deus...
Onde a firmeza desses pais que ensinam os filhos a sacrificar os domingos, os dias de guarda, e não se juntam, ao menos, em um tímido movimento de petição ao governo que acompanham e apoiam?
Deus dos céus, como perdoar tão criminosa renúncia do mais caro e sagrado dos direitos?
Não há dúvida, estamos em plena perseguição da Igreja, e muitos dos seus membros, juntamente os ricos de posições, assistem, neutros e humilhados, ao martírio da mãe comum, abandonando-a com desamor e dura ingratidão, aos extremos da malignidade de carrascos endurecidos e insaciáveis.
Nenhum desses filhos prodígios, nós os desafiamos perante Deus e os homens, será capaz de dizer que neste momento solene, está em paz com a consciência, todos sabem e sentem que a salvação os admoesta ao caminho do dever, que não pode ser outro senão agir, como for, em defesa da causa suprema, ainda que a sua nobre atitude os exponha às iras do poder.
Mas a verdade incontestável é que até esse perigo – não lhe atenua o delito, porque, se todos se unissem para disputar, em campo aberto, a verdadeira liberdade espiritual, o despotismo capitularia ante a resistência pacífica e heróica da grande maioria.
As adesões, que aspiramos, são as espontâneas e sinceras, dessas que não medem trabalhos, nem se apavoram com os riscos do combate; e, todos os dias elas nos chegam, francas e altivas, ora envoltas no calor entusiasta dos moços, ora na voz prudente e iluminada de venerandos e gloriosos patriarcas.
A frequência obrigatória dos professores e alunos, nos dias santos, não é somente contra o próprio regulamento da instrução, desprezado, no que tinha de mais digno e conciliador, por aquele mesmo que o promulgou.
Mas isto é um corolário natural das escolas sectárias, criadas e mantidas pelos funcionários de confiança do governo, cujo prestígio e autoridade acobertam; assim, o crime mais odioso – a perversão do caráter das crianças.
(...)
Nós que combatemos ontem, em nome dos interesses da pátria, o advento do governo militar, perguntamos hoje aos católicos: podemos aplaudir e curvar a fronte ao inimigo de Deus?
Não, piauiense, transigir com os perseguidores seria macular-nos com os seus erros detestáveis, seria sacrificar a alma dos nossos filhos, seria imprimir, mais uma vez, o beijo de Judas, na face de Jesus: se eles provocam o combate, é indeclinável o dever de aceitá-lo, em todas as suas consequências, ainda que tenhamos de cair vítimas de novos e sanguinolentos sacrifícios.
Outros cantarão depois, pouco importa, sobre os nossos túmulos gloriosos, o hino do triunfo. É a lição da história – é a sentença infalível e eterna!
Referência:
MARTINS, Elias. Guerra Sectária. Teresina: Tip. d’O Apóstolo, 1910.
Notas:
1. Referente a Juliano, o apóstata. Último imperador romano pagão, do século IV d. C.
2. Versos 1-2 e 7-8; estrofe 28, canto IV, de Os Lusíadas de Luís de Camões.
3. “Deixai vir a mim os pequeninos”. S. Marcos 10, 14.
Autor:
Elias Firmino de Sousa Martins, nasceu em 1869 - Picos; faleceu em 1936 - Teresina. Bacharel em direito (1890). Membro da junta governativa de 21 a 29-12-1891. Procurador da República (1897/9 e 1915/7). Um dos organizadores do Partido Católico (1890-94) e do Partido União Popular (1910-1912). Jornalista. Redigiu "A Atualidade" (1889), "Ο Estado" (1892), "O Diário" (1893), "O Apóstolo" (1909-1912), "Jornal de Notícias" (1917). Fundou o "República" (1896/9). Publicou: "O Poder das Trevas" (1913), "Frei Serafim de Catânia” (1917), "Operário da Boa Vinha", sobre o cônego Acylino Batista Portela Ferreira (1920), "O Devaneio da Ambição", "Apelo aos Homens de Bem" e "Fitas". (Cláudio Bastos, Dicionário Histórico e Geográfico do Estado do Piauí, 1994).