UM MANICACA de Abdias Neves (1909): uma amostra romanesca do Anticatolicismo no Piauí na visão do "Voltaire piauiense".
CAPÍTULO XIII
Dia de Finados. O céu escondera num manto grosso de nuvens as rutilâncias azuis e os esplendores luminosos da véspera. Parecia de luto, acompanhando a comemoração universal dos mortos.
De momento a momento, voava da torre das igrejas um gemido de bronze: era a voz da religião, desconsoladora e implacável, lembrando ao homem a triste fragilidade de seus destinos.
Desde a manhã, muito cedo ainda seguiam grupos numerosos para o cemitério um desfilar contínuo de senhoras e crianças. Iam alegres, conversando, levando flores, conduzindo velas, na despreocupação de quem vai à peregrinação festiva de um santo.
Percebia-se facilmente a nota convencional da visita à casa dos mortos. Era feita porque obrigavam os costumes. Muitos a faziam na ânsia de gozar o espetáculo daquele fluxo e refluxo humano.
A onda cresceu à tarde ao declinar do sol, quando o calor diminuiu. As casas despejavam na rua todos os habitantes. Reuniam-se grupos. Formavam uma multidão compacta, estendida em linha, movediça, ondulante, sempre fugidia e sempre renovada. A cidade inteira se agitava no mesmo impulso, na mesma direção, tomando um aspecto novo, pinturesco e sugestivo.
D. Júlia não fez exceção. Passara todo o dia seriamente contrariada, sob a pressão daquele inimigo oculto das trevas. Não quis, entretanto, faltar. Poderiam notar, e Luís Borges aconselhara muitas vezes:
- Nada de anormal.
Saiu às cinco horas, apressando-se, querendo chegar à necrópole antes que o povo a invadisse.
Desde o largo 15 de Novembro os grupos se tornavam mais cerrados. Constituíam, afinal, uma mole extensa que se perdia ao longe numa nuvem de poeira, dourada pelos últimos raios do sol poente. Todas as cores ali estavam, misturando-se, destacando-se mais vivas junto aos trajes de luto, revestindo-se de uns tons de rosa sob os fulgores daquele ocaso de estio...
D. Júlia estugava o passo, acotovelando, empurrando quem lhe tomava a frente, impacientando-se, desejosa de não ir até ao fim. Que inferno! Só "por pecado"! Chegou, finalmente, ao portão do cemitério e entrou, arrastada na onda, incapaz de resistir. E encontrando-se de repente ao pé das primeiras sepulturas, respirou aliviada.
O cemitério é extraordinariamente simples. Não tem um monumento que prenda a atenção. Não tem um cipreste que lhe dê sombra. Aqui e ali o mármore de uma lousa. Um ou outro mausoléu grosseiramente levantado, sem arte e sem gosto. Quase que somente sepulturas rasas, cavadas em linhas paralelas, numa só direção, marcadas por uma cruz negra numerada.
Aquela hora, era fantástico seu aspecto. Caía o crepúsculo arrastando sombras, trazendo a noite. As árvores em redor, fora dos muros, iam emudecendo. Pássaros fugiam. Uma cigarra distante soltava um trilo agudo, prolongado e dolente. Pelo chão, rodeando as sepulturas, milhares de velas ardiam, bruxuleavam, estendiam-se em ziguezague - evocando uma dança de fogos-fátuos numa reunião de bruxas. Coleavam. Torcicolavam, ora vivas, ora quase extintas, parecendo a distância uma floração maravilhosa da terra - flores de fogo onde só havia a frieza da morte. Sombras negras de mulheres ajoelhadas tremiam sob a luz palpitante das pequeninas chamas, estendendo-se em formas esquisitas, caprichosas, dançando entre os túmulos. O sol morria incendiando o céu. Ia ocultar-se. Um raio último passou pelo Cruzeiro e envolveu-o numa faixa de ouro. Foi um beijo de luz que passou breve.
E a noite caiu rapidamente. A luz rósea do crepúsculo desapareceu. Onde o sol se escondera ficou apenas uma mancha rubra, franjada de ouro. As sombras tornavam-se mais espessas. Não se distinguiam já dentro do cemitério as feições das pessoas. Via-se somente uma multidão silenciosa transitando por entre as chamazinhas vermelhas das velas, perdida no meio daquela fantástica floração ígnea. E o espetáculo era mais impressionante. Todo o vasto quadrado ardia no fundo das trevas...
Principiou, então, o refluxo. Vultos negros passavam, esgueirando-se como sombras, rumo do portão. Outros vieram. Outros. Depois, foi novamente a onda, a multidão, premindo-se, empurrando-se, correndo para sair logo.
Afastava-se fugindo ao deslumbramento daqueles milhares de pontos luminosos, àquelas chamas de um brilho atordoador, de uma intensidade de fazer vertigens. O deserto dominava de novo. Os mortos voltavam ao isolamento.
João Sousa saiu com os últimos visitantes. Perdera as filhas na lufa-lufa. Procurara-as sem as ver mais. Deviam ter voltado. E passava o portão, quando o Dr. Ernesto, que também saía, lhe bateu no ombro.
- Sozinho?
Explicou. Perdera de vista a família e não pudera mais encontrá-la.
- Todos de saúde?
Iam bem. E agradeceu.
Seguiram calados um momento. O estudante meditava, medindo o passo, acompanhando o velho, com uma preleção contra os nossos costumes engatilhada. O companheiro, porém, não se mostrava disposto. Vinha taciturno, cansado, sem vontade de ouvi-lo. Afinal, Ernesto falou admirando-se da concorrência do cemitério.
Muito povo. Disseram-me que foi superior à dos últimos anos. João Sousa concordou.
- Sei, aliás, o motivo.
- O motivo?
- Perfeitamente. Nos últimos anos, ignoro por que não veio a música. Está aí a razão. Veio hoje. Esperavam-se cerimônias religiosas. Padres. Rezas. Cânticos. E nesta terra insípida tudo diverte. Dois terços dos que compareceram, vieram divertir-se.
João Sousa contestou sem entusiasmo para dizer alguma coisa:
- Não é tanto assim. O doutor exagera.
- Exagero? É a lição dos fatos, acredite. Quer saber? O Praxedes não perde a ocasião de pregar contra o fanatismo. O piauiense não é fanático. É um povo entediado. É a ânsia de diversões que o leva à igreja. Que você quer que faça uma senhora? O teatro vive eternamente fechado.
Nos bailes só se permitem rapazes e moças. Não temos um jardim. Não há um ponto para onde possa ir: vai para a igreja e, uma vez encaminhada, aquilo é uma teia que prende. Sentimento religioso, crenças, isso é que não. E quer a prova? Observe: os homens que se divertem mais, que andam todo o dia fora de casa, que encontra distração nas próprias ocupações, são quase indiferentes à religião dos padres. As senhoras, se não forem à igreja, morrerão de tédio. O padre conhece isto. E aproveita a situação, criando um cerimonial pomposo, fazendo festas ruidosas, fazendo dos templos casas de espetáculos, em que, ao lado da música e dos perfumes e das luzes dispostas com arte, representa quadros vivos.
- Quadros vivos?
Sim! Representa a "coroação da Virgem", cenas da Paixão e quanta coisa mais! Um verdadeiro teatro aonde os crentes afluem.
João Sousa contestou novamente:
- Não, no Piauí não é assim. Não tivemos, ainda, "coroação da Virgem"; a Semana Santa é simples...
Ernesto revoltou-se:
Não temos ainda, mas havemos de ter. Esta é boa. Há em toda parte. E já principiamos. Quer ver? Que é a Maria Beú nas procissões da Semana Santa? Que são os anjos, as três figuras da Fé, Esperança e Caridade de outras procissões? São representações vivas, verdadeiro regresso à idolatria dos
gregos. Quem deixa de ver? A evolução das religiões se faz por uma curva. O Catolicismo vai completar a sua. Declina. Enquanto nele preponderaram os elementos do Cristianismo, Jesus pôde ser para muitos um ser espiritual. Quando esses elementos foram absorvidos, a nova seita desceu das altas para as baixas camadas sociais. Os homens de cultura admitiam, aceitavam e respeitavam a religião espiritual do mestre. Compreendiam a existência do ser abstrato. O povo não compreende. E como as crianças, não admite criações abstratas. Pensa por imagens. Precisa ver, sentir, apalpar o objeto de sua adoração. Foi preciso materializar o culto, inventar novos deuses, novos mediadores, fazendo-os à nossa semelhança, dotando-os de paixões. O povo não o compreenderia de outro modo. E ele é agora o baluarte onde se entrincheiram os que vivem da exploração do céu.
- Os padres?
- Não têm outro qualificativo. Desapareça o inferno e o céu: com eles irão os santos, as missas, o purgatório, a confissão, esse poder divino que os padres se evocam de perdoar pecados. E não pense que isso esteja longe. Hoje é muito comum descrer-se do inferno. No purgatório só acredita um número insignificante. E tanto a igreja observa a crise que a ameaça que todos os dias mais inventa devoções - é o Sagrado Coração, são as Filhas de Maria. E brada sem descanso, proibindo festas, condenando o luxo, vedando a leitura dos jornais suspeitos.
- E consegue muito!
Nada! O povo está vendo que os padres condenam as festas mundanas - quando são mundanos - metem-se em política e disputam cargos e obedecem a todos os acenos dos chefes mundanos. Vê tudo isto e vai fazendo o que deseja. Frequenta ainda, porém, a igreja. Procura ali a embriaguez dos sentidos, na decoração opulenta, na música enervante, nos perfumes embriagadores. É culpa do seu temperamento, esmagado pela exuberância da natureza, é fortemente inclinado para a vida contemplativa, direi mesmo para o misticismo. Depois, é acentuadamente misoneísta, apegado ao passado. Meu pai foi católico, diz ele. Foi a religião que encontrei. Sigo-a sem exame. Ora, pode-se dizer que quem assim fala, seja católico? Absolutamente, não. É católico da mesma forma que seria maometano, ou ateu... Não é católico porque suas crenças o façam católico. É por um sentimento de respeito, de veneração pelas ideias e pelas crenças dos antepassados. Não tem, portanto, convicção. Não tem crenças firmes. Sua fé abala-se e rui ao primeiro argumento. E a razão por que lhe digo, meu caro, que o Catolicismo descreveu já a curva da sua evolução e conta os derradeiros momentos.
João Sousa continuava calado. Que lhe importava o progresso ou o declínio do Catolicismo? No momento, preocupava-o, mais do que isso, o desejo de chegar a casa, ver-se livre do suor e da poeira, arrancar as botinas e descansar. Preocupava-o muito mais do que discutir assuntos de religião.
- Que lhe parece? Consultou o estudante, notando-lhe o silêncio. Minhas observações não são justas?
- Teorias...
- Teorias? Observação dos fatos que eu fiz, que você fará, se quiser ver. Olhe! Defrontavam o casarão triste do hospital. Estava completamente fechado. Parecia em abandono. Olhe! Repeti. É Santa Casa?
- Era.
- O hospital é a prova mais evidente do que lhe afirmo. Dizem-lhe todos os dias que a caridade é a mais nobre das virtudes cristãs. Quem vem aqui? Qual o católico desses mais ardentes que não faltam a uma missa e custeiam todas as festas, todas as subscrições da igreja. Qual o que se lembrou de mandar uma esmola para os miseráveis aqui acolhidos? Nenhum. Para ser um bom católico é bastante confessar-se, frequentar missas, ladainhas e novenas; privar com os padres; concorrer para as festas do culto. A religião resume-se nisso. Não há outras obrigações. Não é preciso praticar a caridade, perdoar ofensas, amar o próximo, fazer o bem. Você contesta?
João Sousa não respondeu.
Não contesta? Nem pode fazê-lo. Pense na exaltação, no ódio, no furor com que as beatas descompõem, ameaçam, perseguem a quem se aventura a dizer que a auréola de santidade dos padres é acesa por uma constante hipocrisia. A ofensa ao sacerdote é o pior dos crimes. Na incerteza se irá o herege para o inferno, quereriam por precaução vê-lo sofrer as maiores torturas neste mundo. Não negue. É assim. Julgue por aí a moral cristã dos que me queimariam hoje, se pudessem reviver as fogueiras da Inquisição. Ora, os que procedem deste modo professam a religião de Jesus? Creio que lhe demonstrei que não professam. Religião do padre, fanatismo, estou de acordo. Porque na religião é preciso não ver somente o lado exterior. A religião não é o culto. Numa religião, é a moral que se deve procurar.
- Mas, doutor, a moral cristã é superior a de todas as religiões...
Distingo. Em primeiro lugar, o que chamamos a moral cristã já existia nos livros de Platão, no maior florescimento do paganismo. Existia antes mesmo na Índia. Os Evangelhos só fizeram compendiar princípios correntes na literatura e nos costumes dos povos mediterrâneos. Depois, medite e verá que essa afirmativa é um chavão. Pense que Jesus condenava a riqueza e calcule qual seria o futuro econômico dos povos se não admitissem a acumulação de bens. Avalie qual seria o futuro da humanidade, se, seguindo a Igreja, tivéssemos a virgindade como o único estado de pureza. É um chavão. Estou cansado para lhe demonstrar isto. Será de outra vez.
- Mas o doutor não nega que ela é um freio para o povo.
Não nego? Nego. Vá a uma prisão: encontrará a maioria dos criminosos de rosário ao pescoço. Depois, já lhe disse que o povo pensa por imagens. Prédicas, sermões não valem sem o exemplo. O exemplo é tudo. Ora, o que ele vê é a negação do que você denomina a moral cristã: vê que a riqueza é o melhor dos bens para o padre; vê que condena a mancebia e vive amasiado; vê que se vinga cruelmente dos adversários, de suas ideias quando Jesus manda perdoar as ofensas; vê que está acima de Deus no culto; vê que enriquece vendendo os sacramentos, taxando uma tabela de preços. Como pode ser um freio? Isto é uma frase feita, que vai sendo repetida, sem exame e sem critério.
Chegavam à porta de João Sousa.
- O doutor não entra?
Não. É tarde. E despediu-se.
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Fonte:
NEVES, Abdias. Um Manicaca. Teresina: Editora e Livraria Nova Aliança, 2022. p. 297-307.
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Em um posfácio colocado em uma das edições dessa obra, consta o relato: "A conversão na palavra da filha" e trata dos últimos momentos de Abdias Neves, assistido pela filha, que teria testemunhado a conversão do pai, conhecido por sua posição ateísta e anticatólica. De modo semelhante, Abdias Neves teve seu final a maneira de Voltaire, seu principal mestre, e consta de fato no testemunho de sua filha Yara Neves, a sua conversão no leito de morte; no entanto, tal como o caso de Voltaire, não se sabe exatamente a veracidade e a autenticidade de tal conversão, como de fato são todas as conversões desesperadas de inúmeros inimigos da Igreja ao longo dos séculos.
Conforme consta existir na primeira edição, de 1909; figura, ainda, na folha de rosto, a epígrafe "Écrasons l'infame", ou melhor "Écrasez l'infâme" de Voltaire: que o iluminista francês incluía ao final de todos os seus escritos, a qual significa "Esmagai a Infame!", uma convocação a perseguição e difamação sistemática de todo o Cristianismo e principalmente contra a Igreja Católica.
Abdias Neves é considerado o maior escritor anticlerical da História do Piauí, anticatólico e irreligioso. Escreveu além do romance já citado: O Padre Perante a História (1908), um ataque direto ao Padre Joaquim de Oliveira Lopes; Psicologia do Cristianismo (1910) seu Magnum Opus, um tratado de crítica histórica e filosófica ao Cristianismo em seus principais fundamentos, baseados nos Evangelhos, no Helenismo grego e no Paganismo romano.
Militou prolificamente nos jornais A Luz, O Reator e O Monitor, com ataques constantes a oposição política católica, ao clero e ao Bispo do Piauí, ao longos dos anos de 1906 a 1914.
Sobre a qualidade literária do romance, Paulo Gutemberg Carvalho analisa e apresenta de forma evidente:
Um Manicaca parece mais uma tese sociológica preocupada em registrar e combater o comportamento demasiadamente religioso da sociedade teresinense no final do século passado. Seus personagens não têm independência e servem apenas para justificar um ponto de vista do autor. (CARVALHO, Paulo Gutemberg. "A luta político-religiosa entre Igreja e Maçonaria no Piauí. Carta CEPRO. Teresina, v.1, n.1, jul. dez, 1986).